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O grupo, do qual eu era o único mentalmente são |
Após a
desistência no UTMB devido a problemas com a altitude, comecei a pensar que
todo o treino efectuado e os muitos quilómetros percorridos deveriam ser
aproveitados num novo desafio, com uma distância equivalente. O calendário não
era muito favorável e uma das poucas alternativas disponíveis seria a Ultima
Frontera, prova realizada em Loja, povoação da província de Granada, Espanha,
com a distância de 166 quilómetros e um desnível positivo de cerca de 5.000
metros. Tinha como aspectos negativos, o facto de a prova se disputar em 2
voltas iguais de 83 quilómetros e ter uma extensão considerável em asfalto.
O primeiro ponto
a ultrapassar seria o de arranjar companhia para a viagem e entrei em contacto
com a Carla André. Disse-me que a Susana Brás e o Zé Guimarães também estavam a
pensar ir. Mais tarde, juntou-se o Miguel Pereira e nas vésperas da prova, o
Pedro Quina. Entrava num grupo do qual ou não conhecia as pessoas, ou mal as
conhecia. Mas deste grupo falarei no final.
Viagem sem
grande história até Loja, embora com grande diversão e descontração geral. À
chegada, o ritual habitual: levantamento de dorsal, jantar, organização do
material para a prova e descanso.
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Na partida... |
Às 9h15 da manhã
é dada a partida e começamos logo uma subida acentuada que nos leva a uma
altitude onde nos é permitida uma vista por toda a paisagem circundante, em que
a presença do olival é permanente. Para onde quer que olhemos, vemos oliveiras
e mais oliveiras. Subo devagar, mas vou ultrapassando alguns atletas, com quem
vou conversando. O meu objectivo inicial é ir tranquilamente até ao primeiro
abastecimento, situado ao quilómetro 20 e avaliar como estaria após esta
primeira fase de aquecimento e entrada em velocidade de cruzeiro. Ao quilómetro
17 atravessamos uma povoação, Zagra e retenho na memória um café. Essa
informação seria muito importante na 2ª volta, mas ainda falta muito para lá
chegar…
Ao longo do
caminho, vou estando atento à marcação e a sinais importantes, pois sei que
terei que fazer a 2ª volta já de noite e com bastante menos visibilidade. Fico
tranquilo, a marcação está bem feita e reforçada sempre que há mudança de
direcção. Vou sem o Garmin ligado, pois esqueci-me de levar o carregador e a
autonomia apenas dará para parte da prova, pelo que optei por deixar para a 2ª
volta, onde o track que levava carregado me poderia ajudar em caso de dúvida no
caminho a seguir. Passo o 1º abastecimento, na povoação de Ventorros de San
José e o calor começa a fazer-se sentir fortemente. O percurso não oferece
qualquer sombra, pois percorre estradões de terra batida e, por vezes, estradas
asfaltadas de montanha. Vou passando e sendo passado por um duo que progride
junto, composto por um americano residente em Abu Dhabi e um inglês, de
Manchester. Trocamos algumas palavras, mas não consigo coincidir com o ritmo
deles. Chego ao 2º abastecimento (km 35), um ponto-chave de controlo do
percurso, pois voltaremos a passar lá, no regresso de Montefrio, o ponto mais a
norte do percurso. A partir deste abastecimento, o duo passa a trio e vou
progredindo até Montefrio, povoação muito bonita, onde está situado o 3º
abastecimento (km 48). Saímos os 3 juntos do abastecimento novamente em
direcção ao posto de controlo onde está situado o 2º abastecimento, mas por um
caminho diferente. Chad, o americano, aumenta o ritmo e afasta-se. Mais à
frente entramos na parte mais bonita do percurso, num sigle track que ladeia um
rio e em que temos algumas tréguas do sol impiedoso, pois existe bastante
vegetação. É um single track com alguma pedra, mas sempre seco, pelo que é um
terreno em que progrido bem, deixo o Charlie, o inglês para trás e apanho o
Chad. Seguimos os dois durante algum tempo, mas assim que o terreno se torna
menos técnico, ele volta a impor um ritmo mais elevado e ganha vantagem. Volto
a ser apanhado pelo Charlie e seguimos juntos até ao 4º abastecimento. O calor
é insuportável e o passar das horas vai começando a deixar marcas. Tenho a
camisola branca, devido ao sal deixado pela transpiração. Por mais que tenha
cuidado com a hidratação, sei que estou em perda, pois por mais líquidos que
ingira, não consigo absorver à mesma velocidade que estou a perder. Vou tendo o
cuidado de ingerir sal. Já são muitas horas debaixo de tanto calor e começo a
desejar que chegue o fim da tarde, que caia a noite para refrescar um pouco.
Começo a perder ritmo, o meu corpo está completamente sobreaquecido, o Charlie
vai-se embora. Sigo sozinho até ao 5º abastecimento, ao quilómetro 70, em Huétor-Tajar.
Quando chego, vejo o Charlie sentado à sombra e pergunto-lhe como se está a
sentir. Responde-me que está bem muscularmente, mas está com a temperatura
corporal muito elevada. Abasteço e sigo, convidando-o a vir comigo. Custa-lhe a
arrancar mas segue-me, com alguns metros de atraso. Pouco tempo depois tenho
uma quebra terrível, o Charlie ultrapassa-me enquanto eu vou correndo a um
ritmo bem mais lento. Aproxima-se a última grande subida antes de descer para
Loja e eu estou sem forças, com um calor brutal. Arrasto-me na subida, sou
apanhado pelo Paco, um espanhol com quem tinha trocado algumas palavras ainda
antes do 1º abastecimento. Nessa altura tinha-se queixado de uma lesão, pelo
que lhe pergunto como se está a aguentar. Responde-me que bastante bem, que lhe
custam as descidas, mas que consegue rolar bem no plano e subir bem. Apanhamos
2 atletas que estão a fazer a prova dos 55 quilómetros e dou-me conta que já
lhes dei praticamente 30 quilómetros de avanço! O Paco vai-se embora e eu fico
sozinho. Nesse momento, ainda não sabia quantos quilómetros iria fazer
completamente só…
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Sinalização |
Após o final da
subida, descida até Loja, contornando a cidade até chegar às imediações do
pavilhão. Aquele percurso pareceu-me interminável, tomei nota mental, para me
preparar psicologicamente para o final na 2ª volta, em que cada dezena de
metros parece uma eternidade.
Tenho fome e
apetece-me comida confeccionada, mas tenho uma desilusão. Ainda não tinha
chegado a hora para terem a massa pronta. Como uma sandes de presunto que
levei, preparo-me para a noite, levando o frontal, e reabasteço de barras e
gel. Estou a demorar algum tempo, apercebo-me e saio o mais rápido possível,
pois é perigoso ficar no local da chegada já com 83 quilómetros. Não olho para
trás e começo a 2ª volta. Agora já não há nada a fazer, é seguir e terminar a
prova! De novo, a subida interminável. Consigo fazê-la, bem como à descida
subsequente, ainda de dia. Finalmente a temperatura desce um pouco. Continuo
com fome e apetece-me comida “normal” e o meu cérebro vai buscar o café de
Zagra, que desta vez encontrarei ao quilómetro 100. A partir desse momento, sou
movido à ideia de uma cerveja. Estou enjoado e preciso desesperadamente de
beber cerveja, pois é a bebida que me atenua o problema em provas de grande
distância. Foram longos quilómetros até Zagra. Entro na povoação, virando à
direita, sempre no percurso da prova, no entanto oiço barulho de conversa à
minha esquerda. Penso que será nessa direcção o centro da povoação e onde
estarão situados os bares, mas eu tenho a ideia de ter passado por um no
caminho… Vou percorrendo as ruas e nunca mais vejo nenhum bar, começo a pensar
em voltar para trás, até que vejo o bar que tinha fixado na 1ª volta. Entro e
peço uma cerveja. As conversas automaticamente param ao ver alguém equipado
para correr, de frontal na cabeça e pedir cerveja. Perguntam-me se estou a
fazer alguma corrida. Explico-lhes que sim, que já terão passado por ali 3
atletas, que eu seguia em 4º lugar.
“E paras para
beber uma cerveja?”
“Sim,
precisava!”
“E quantos
quilómetros te faltam?”
“66 kms”
“Ah, então
começaste agora…”
“Não, já corri
100 kms!”
“100 kms?! Mas
quantos quilómetros tem a prova?”
“166”
“Em quantos
dias?”
“Eu espero
demorar só 1 dia, mas o limite são 30 horas.”
Nesta altura já
toda a gente do café estava à minha volta, uma senhora contava-me que no ano
anterior o abastecimento tinha sido naquela povoação, enquanto alguns velhotes
me perguntam como é possível. Vou bebendo a cerveja e comendo a minha tapa de
chouriço assado. Acabo e decido repetir a dose. Vou olhando pela janela a ver
se passa algum atleta, mas a prioridade é alimentar-me. Continuo na conversa,
enquanto vou acompanhando o jogo do Barcelona pelo canto do olho. Acabo,
despeço-me, desejam-me boa sorte e saio, não sem antes confirmar que o
Barcelona ainda está empatado 0 a 0. Saio duplamente satisfeito, tudo correu
bem naquela paragem, nem o Barça está a ganhar…
A 3 quilómetros
tenho o 7º abastecimento. Animado como estou, passam num instante. Quando saio
de Ventorros aparece-me o inimigo nocturno que me fará companhia até quase ao
final da prova: o sono! Depois de vencido o inimigo diurno, o calor, tenho novo
combate pela frente. Vou progredindo, mas com muitas dificuldades, os olhos
fazem um esforço tremendo para continuarem minimamente abertos, a fadiga já é
enorme, as formas das oliveiras distorcem-se e assumem-se como objectos,
animais ou pessoas estranhas e com as dimensões mais improváveis.
Alcanço o
abastecimento duplo, onde retornarei depois de Montefrio. Já levo 118
quilómetros feitos e cada vez me preocupo menos com o lugar que ocupo, só vou
concentrado em acabar e sei que cada passo que dou me aproxima da meta. Faltam
13 quilómetros para chegar a Montefrio, mas serão 13 quilómetros muito
difíceis. O sono agrava-se à medida que a noite avança, até que a dada altura,
não consigo manter os olhos abertos. Decido parar e dormir um bocado, vou
procurando no caminho um local onde o possa fazer. Paro debaixo de uma árvore,
tiro o casaco e visto-o para não arrefecer excessivamente e entrar em
hipotermia. Utilizo o camelbak como almofada e adormeço. Não sei quanto tempo
dormi, pois não olhei para o relógio, mas calculo que tenha sido, pelo menos,
meia hora. Quando acordo, já consigo abrir os olhos e retomo a corrida até como
forma de me aquecer. Ainda me parece uma eternidade chegar a Montefrio, mas lá
chego e abasteço bem. Dizem-me que há massa. Aceito e peço uma cerveja para
acompanhar. Perco bastante tempo a conversar e a comer a massa. Sei que é
fundamental alimentar-me nesta fase, que a energia que estou a ingerir me vai
levar à meta. Curiosamente e apesar de ter perdido tanto tempo, ainda sigo na
4ª posição. Quando saio de Montefrio, cometo o único erro de navegação e volto
pelo mesmo sítio por onde tinha vindo, quando deveria ter voltado à esquerda
para apanhar o outro caminho que conduz ao abastecimento seguinte. Volto para
trás e pergunto qual o caminho que devo seguir, sou orientado e volto ao
percurso. Sinto-me reconfortado e assumo que só uma lesão ou um acidente
poderão fazer com que não termine a prova. Mais hora, menos hora, sinto que vou
chegar a Loja. Os primeiros quilómetros, ainda os faço bem, mas o sono volta a
atacar e o cansaço acumula-se e são uns longos 16 quilómetros até ao próximo
abastecimento. Entro novamente no trilho junto ao rio, mais técnico e,
contrariamente ao que esperava, aumento o ritmo a que me desloco. Os
quilómetros passam mais rapidamente, pois estou mais divertido e tenho ainda
capacidade para saltitar e esquivar-me das pedras. Assim que entro em estradão
o ritmo abranda. Tenho uma nova crise bastante forte, em que a progressão é
muito lenta. Recebo uma mensagem da Susana a dar-me força e a perguntar onde
ando. Trocamos mensagens e informo-a que estou a 20 quilómetros do final, mas
que vou demorar a percorrê-los e recebo a informação que os 3 chegaram bem
(Susana, Pedro e Zé). Pede-me para a avisar quando estiver mais perto para me
poderem esperar na meta. Finalmente chego ao abastecimento (147 kms), onde paro
um bom bocado a descansar. Vou conversando com os voluntários que lá estão, que
me dizem que o 1º atleta chegou ao abastecimento a correr, o que os deixou
estupefactos pois o abastecimento é precedido de uma subida ainda considerável.
Antes de sair, dizem-me que levo algum avanço para o 5º, de pelo menos 10’,
pois ainda não se ouviam os cães ao longe ladrarem, sinal da passagem de um
atleta. Esses 10’ era o tempo que um atleta estava a levar desde os cães até ao
abastecimento. Nesse abastecimento acabo de bater o meu recorde de distância
percorrida, que anteriormente se situava nos 146 quilómetros. Assim que
reinicio a corrida, oiço uns cães ladrar, calculo que seja o 5º atleta a chegar
a esse ponto, o que me deixa uma vantagem estimada de uns 15 minutos, 10
minutos para fazer o percurso e uns 5 minutos para o abastecimento. Corro a um
ritmo muito aceitável para a fase da prova em que me encontro, animado pelo
facto de só distarem 6 quilómetros entre estes dois abastecimentos, mas nova
crise se abate e os últimos 3 quilómetros até chegar novamente ao abastecimento
de Huétor-Tajar tornam-se quase intermináveis. Finalmente chego e encontro o
Eric, organizador da prova, aproveito e pergunto-lhe pela Carla, informa-me de
que se tinha magoado num pé e que tinha abandonado ao quilómetro 115. Do grupo,
só não tinha qualquer informação sobre o Miguel. Sigo para a etapa final, estou
a apenas 13 quilómetros da chegada, mas o que faço facilmente em treino em
menos de 1 hora, aqui significariam quase 2 horas. Ainda consigo correr, embora
a um trote ligeiro, no terreno plano, mas não tenho força para correr nas
subidas, onde progrido arrastando-me penosamente. Nesta fase, com o nascer do
dia e a aproximação ao final da prova, começo a ser inundado de chamadas e sms
a um ritmo a que tenho dificuldade em responder. Ataco a última subida, que
faço com um esforço tremendo. Parece que não tem fim, ainda por cima em
asfalto… Parece que vou terminar a subida, mas não, apenas tenho uma pequena
descida de 100 metros, para voltar a subir, a subir, tudo interminável…
Finalmente, chego ao cimo da subida e entro na descida em terra batida, que tem
um troço com alguma pedra, já com Loja lá ao fundo, em baixo. Recordo-me de que
ainda tenho que contornar a cidade e que o que parece perto, torna-se neste
caso longínquo mentalmente. Envio mensagem à Susana a avisar que estou a
chegar. Desço bem a parte mais técnica e, no fim, paro para responder a uma
mensagem. Quando retomo, olho para trás e “vejo” ao fundo um atleta a correr. O
meu cérebro simplesmente disparou: “Não é possível! Não vou perder o 4º lugar
nos últimos quilómetros da prova, depois de andar sozinho quase 100 kms!”. Se
já tinha descido bem a parte técnica, a partir daí foi a loucura até à meta. Já
não tinha o Garmin ligado, mas fui seguramente muito próximo de 4’/km até ao final.
Nos últimos metros, à minha espera, estavam o Pedro e o Zé, que me
acompanharam, enquanto a Susana estava junto à meta. Corto a meta e sem sinais
do 5º classificado…
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Na chegada, com a Susana, o Pedro e o Zé |
O 5º
classificado acabou por ser o Miguel, numa excelente prova, apenas a 23 minutos
de mim (calculo que tenha sido a ele que os cães ladraram quando saía do
abastecimento do km 147). A minha ameaçadora visão, tinha sido apenas isso, uma
visão! Para a história, fica a conclusão da prova em 24 horas e 11 minutos,
alcançando o 4º lugar.
Relativamente à
prova, para o meu gosto pessoal tem demasiado asfalto e não gosto de fazer 2
vezes o mesmo percurso. Como pontos positivos tem a extrema amabilidade dos
organizadores e de todos os colaboradores. Está bem marcada, embora os
abastecimentos sejam fracos para a distância da prova.
Quanto ao grupo,
tornou este fim-de-semana num dos mais memoráveis da minha vida. Tenho a
certeza de que estes momentos ficarão comigo por muitos anos e que se
transformaram de quase desconhecidos em amigos. Ainda teremos muitas aventuras
juntos. Esta camaradagem, foi sem qualquer dúvida, o ponto alto do
fim-de-semana.
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O brinde com a Michelle, organizadora da prova, antes da despedida |